Nasci em Uruguaiana, interior do Rio Grande do Sul, meu pai militar, minha mãe do lar.
Vivi
como os guris daquela época, infância feliz, brincadeiras muitas,
namoricos todos, malícias nenhuma. De meu pai herdei a cumplicidade no
amor, ele era assim com minha mãe, namorados que passeavam diariamente
de mãos dadas, estavam sempre juntos; da mãe, herdei a força de vencer, e
de Érico... Bem vocês já vão saber.
Numa tarde,
verão de 68, com meus 16 anos, jogando basquete no colégio estadual D.
Hermeto, em Uruguaiana, no intervalo da partida, um amigo convidou-me
para no sábado próximo visitarmos seu meio avô que morava na capital,
Porto Alegre. Meio avô por que esse amigo havia sido adotado como neto,
pois sua mãe havia trabalhado muitos anos na casa da família, e como
também iria a capital neste fim de semana visitar meus irmãos que ainda
eram internos no Colégio Militar, concordei com o passeio.
No sábado,
nos encontramos conforme combinado tomamos o bonde Petrópolis e seguimos
em direção a casa do avô. Descemos e enquanto caminhávamos perguntei como era o
nome do seu avô, respondeu-me Érico, Érico? Sim, respondeu Érico
Veríssimo.
Fiquei
surpreso, atônico e sei lá mais o que, imagina, em poucos minutos
estaria diante de uma pessoa por demais famosa e importante,
reverenciada por todo o povo rio-grandense e do país também, o grande
escritor Érico Veríssimo. Imagine conhecer uma figura tão comentada
pelos professores e pessoas cultas, além disso, um frio na barriga, pois
iria conhecer o meu antigo e ocasional algoz, pois em duas
oportunidades tínhamos já nos cruzados.
A primeira
vez, em 1962, quando para fazer média com meu superior no internato do
colégio militar de Porto Alegre, para as aulas de leitura, que
detestava, peguei um livro, escolhi aleatoriamente pois não iria ler
mesmo, busquei pelo título, “Caminhos Cruzados”, um romance de 1935, do
Érico, e que me foi retirado das mãos imediatamente, pois não era uma
leitura para um guri da minha idade, na época, a critica conservadora o
considerava o conteúdo imoral; na segunda vez, nas enfadonhas aulas de
leitura da quarta série do ginásio, da D. Inês, nossa rígida professora
de português e literatura. Ela nos obrigava a ler um livro todo o mês
nas aulas das segundas-feiras, e como meu estilo era mais vagal, tinha
pego emprestado de uma amiga o livro “Olhai os lírios do campo”, um
Best-seller de 1938, também de Érico Veríssimo, e que só fazia de conta
que lia, tentando enganar D. Inês, só tentando, por que a “veia”
descobriu tudo e me deixou em recuperação e se não fosse a “cola”, acho
que ainda hoje estaria lá na quarta série.
Bem, chegamos, lá estávamos na frente da casa.
Mafalda, a
esposa de Érico, abraçou Carinhosamente meu amigo, fez boas vindas
comigo e nos levou pela lateral da casa até os fundos, no quintal da
casa.
O jardim
era um lugar tranqüilo, parte gramado, parte calçado, muitas plantas e
flores, lugar bem cuidado, ao fundo sentado em um banco de bonde, ao
lado do seu gato preto, lendo jornal bem à vontade, Érico.
A recepção
não poderia ter sido melhor, nos recebeu como grandes amigos, mesmo que
não passássemos de meros guris. Eu, ao mesmo tempo em que maravilhado,
estava extremamente sem jeito, afinal de contas, estava diante daquele
que todos os professores e pessoas cultas sempre falavam muito, e eu,
com o privilégio e ser recebido por ele.
O aperto de
mão e o abraço que recebi se estendeu até o coração. Percebi que se
tratava de uma grande e amiga pessoa, séria, porém muito amável.
Conversamos um pouco, deveria ter sido uma conversa de gente grande com
piás, mas Érico nos tratou como adultos, delicadamente como iguais,
dando-nos uma importância que nem nós sabíamos ter, fiquei encantado, o
momento foi mágico, inesquecível.
A conversa
seguiu mais pela puxada que ele fazia, do que pelo pouco assunto que
tínhamos, contou-nos e perguntou-nos sobre tudo, escritor é assim não? O
momento para mim era mais do que especial, porém o assunto livros e
leitura chegaram e eu fiquei pouco à vontade, pois não sabia nada, nunca
havia lido um livro sequer, e ainda ao lembrar as duas situações
anteriores com livros do próprio escritor fiquei mais desconfortável
ainda.
Como poderia estar diante da melhor expressão da literatura gaúcha e do país e nunca ter lido nada?
E a
pergunta fatídica apareceu, Érico nos perguntou: “e aí guris, já leram
alguma coisa da minha obra?”; meu amigo, seu neto, já havia lido alguns
livros e respondeu imediatamente, quando olhou para mim, não titubeei,
e, para não decepcionar a pessoa que ele era, cometi uma das maiores se
não a maior das mentiras da minha vida, falei que sim, citei dois
títulos que ouvira na escola durantes as aulas de leitura, “Olhai os
lírios do campo e Clarissa”, nem lembrei de Caminhos Cruzados; fiquei
rezando para que ele não perguntasse detalhes, para não ter que aumentar
a mentira; ufa! não perguntou, mas acho que é por que percebeu.
Falou-nos
ainda do livro que estava escrevendo, sobre suas memórias, “Solo de
Clarineta”, ouvimos um barulho alto vindo do interior da sua casa,
discussões, gritaria, vibrações, etc. ele comentou, ah, são meus
meninos, vão lá olhar e vejam o que acham.
Entramos na
casa, num quarto, o de brinquedos, lá estavam Luiz Fernando Veríssimo
seu filho e seu genro um americano, a barulheira era porque disputavam
um jogo de pebolim me pareceu.
Retornamos
ao jardim e Érico fez ainda um comentário, “sabe o Luiz (Fernando
Veríssimo) é a minha criança, tem mais de 30 anos e tenho uma certa
preocupação com este menino, não sei o que vai ser dele quando crescer,
não se firmou em nada ainda, brincou, até comento isso no livro que
estou escrevendo..” (Solo de Clarineta).
Conversamos um pouco mais, agradecemos nos despedimos e fomos embora.
No
caminho de volta, no bonde, na travessia do parque da redenção e nas
Calçadas da Rua Otávio Rocha, até chegar ao apartamento de meu avô, na
esquina da Lima e Silva, não me saia da memória a “mentira”. Como
poderia dizer ao Érico que nunca havia lido nada? Que vergonha passaria?
Senti-me ainda mais insignificante, como nunca tinha lido um livro
antes? Como?
Tomado pelo
sentimento do pecado da mentira, resolvi buscar a absolvição, não em
uma igreja e sim em uma livraria. Na manhã de segunda feira, bem cedo,
depois de pedir um dinheiro emprestado de minha mãe, estava lá na Rua da
praia, em frente a livraria. Comprei de uma só vez dois livros, “Olhai
os lírios do campo” e “Clarissa”, mais tarde a trilogia “O tempo e o
Vento” (O continente- 1949, O Retrato-1951 e o Arquipélago-1962). Essa
era a minha penitência... Mal sabia que seria a descoberta do prazer da
leitura.
Após ler o
primeiro livro, compreendi mais ainda que o abraço e o aperto de mão que
se estendera até o coração alguns dias atrás havia se estendido agora
até a minha mente. A partir daí, não parei mais de ler, li o segundo,
depois a trilogia... e assim foram até hoje muitos outros autores
também.
Quando se adquire o hábito da leitura, a vida passa a ter outro sentido e significado e até mesmo outro sabor.
Nunca
contei isso ao Érico, ele faleceu em 1975, ma a lembrança daquela
tarde, 1966, no bairro Petrópolis de Porto Alegre, sentado em um banco
de bonde, ao lado do seu gato preto, lendo jornal bem à vontade, foi
fundamental, pois foi o dia em que é Érico Veríssimo me ensinou a ler...
a Vida
Ah! Só para lembrar:
O romance “Caminhos Cruzados” ainda não li, talvez pelo sentimento de
preservar o momento em que de certa forma tivemos nossos caminhos
cruzados naquela tarde em 1966, mas o tempo e o vento sei, me farão
lê-lo um dia.