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O Escritor Érico veríssimo ( 1905 - 1975) |
Nasci em Uruguaiana, interior do Rio Grande do Sul, meu pai militar, minha mãe do lar.
Vivi como os guris daquela época, infância feliz, brincadeiras muitas, namoricos todos, malícias nenhuma. De meu pai herdei a cumplicidade no amor, ele era assim com minha mãe, namorados que passeavam diariamente de mãos dadas, estavam sempre juntos; da mãe, herdei a força de vencer, e de Érico... Bem vocês já vão saber.
Numa tarde, verão de 68, com meus 16 anos, jogando basquete no colégio estadual D. Hermeto, em Uruguaiana, no intervalo da partida, um amigo convidou-me para no sábado próximo visitarmos seu meio avô que morava na capital, Porto Alegre. Meio avô por que esse amigo havia sido adotado como neto, pois sua mãe havia trabalhado muitos anos na casa da família, e como também iria a capital neste fim de semana visitar meus irmãos que ainda eram internos no Colégio Militar, concordei com o passeio.
No sábado, nos encontramos conforme combinado tomamos o bonde Petrópolis e seguimos em direção a casa do avô. Descemos e enquanto caminhávamos como era o nome do seu avô, respondeu-me Érico, Érico? Sim, respondeu Érico Veríssimo.
Fiquei surpreso, atônico e sei lá mais o que, imagina, em poucos minutos estaria diante de uma pessoa por demais famosa e importante, reverenciada por todo o povo rio-grandense e do país também, o grande escritor Érico Veríssimo. Imagine conhecer uma figura tão comentada pelos professores e pessoas cultas, além disso, um frio na barriga, pois iria conhecer o meu antigo e ocasional algoz, pois em duas oportunidades tínhamos já nos cruzados.
A primeira vez, em 1962, quando para fazer média com meu superior no internato do colégio militar de Porto Alegre, para as aulas de leitura, que detestava, peguei um livro, escolhi aleatoriamente pois não iria ler mesmo, busquei pelo título, “Caminhos Cruzados”, um romance de 1935, do Érico, e que me foi retirado das mãos imediatamente, pois não era uma leitura para um guri da minha idade, na época, a critica conservadora o considerava o conteúdo imoral; na segunda vez, nas enfadonhas aulas de leitura da quarta série do ginásio, da D. Inês, nossa rígida professora de português e literatura. Ela nos obrigava a ler um livro todo o mês nas aulas das segundas-feiras, e como meu estilo era mais vagal, tinha pego emprestado de uma amiga o livro “Olhai os lírios do campo”, um Best-seller de 1938, também de Érico Veríssimo, e que só fazia de conta que lia, tentando enganar D. Inês, só tentando, por que a “veia” descobriu tudo e me deixou em recuperação e se não fosse a “cola”, acho que ainda hoje estaria lá na quarta série.
Bem, chegamos, lá estávamos na frente da casa.
Mafalda, a esposa de Érico, abraçou Carinhosamente meu amigo, fez boas vindas comigo e nos levou pela lateral da casa até os fundos, no quintal da casa.
O jardim era um lugar tranqüilo, parte gramado, parte calçado, muitas plantas e flores, lugar bem cuidado, ao fundo sentado em um banco de bonde, ao lado do seu gato preto, lendo jornal bem à vontade, Érico.
A recepção não poderia ter sido melhor, nos recebeu como grandes amigos, mesmo que não passássemos de meros guris. Eu, ao mesmo tempo em que maravilhado, estava extremamente sem jeito, afinal de contas, estava diante daquele que todos os professores e pessoas cultas sempre falavam muito, e eu, com o privilégio e ser recebido por ele.
O aperto de mão e o abraço que recebi se estendeu até o coração. Percebi que se tratava de uma grande e amiga pessoa, séria, porém muito amável. Conversamos um pouco, deveria ter sido uma conversa de gente grande com piás, mas Érico nos tratou como adultos, delicadamente como iguais, dando-nos uma importância que nem nós sabíamos ter, fiquei encantado, o momento foi mágico, inesquecível.
A conversa seguiu mais pela puxada que ele fazia, do que pelo pouco assunto que tínhamos, contou-nos e perguntou-nos sobre tudo, escritor é assim não? O momento para mim era mais do que especial, porém o assunto livros e leitura chegaram e eu fiquei pouco à vontade, pois não sabia nada, nunca havia lido um livro sequer, e ainda ao lembrar as duas situações anteriores com livros do próprio escritor fiquei mais desconfortável ainda.
Como poderia estar diante da melhor expressão da literatura gaúcha e do país e nunca ter lido nada?
E a pergunta fatídica apareceu, Érico nos perguntou: “e aí guris, já leram alguma coisa da minha obra?”; meu amigo, seu neto, já havia lido alguns livros e respondeu imediatamente, quando olhou para mim, não titubeei, e, para não decepcionar a pessoa que ele era, cometi uma das maiores se não a maior das mentiras da minha vida, falei que sim, citei dois títulos que ouvira na escola durantes as aulas de leitura, “Olhai os lírios do campo e Clarissa”, nem lembrei de Caminhos Cruzados; fiquei rezando para que ele não perguntasse detalhes, para não ter que aumentar a mentira; ufa! não perguntou, mas acho que é por que percebeu.
Falou-nos ainda do livro que estava escrevendo, sobre suas memórias, “Solo de Clarineta”, ouvimos um barulho alto vindo do interior da sua casa, discussões, gritaria, vibrações, etc. ele comentou, ah, são meus meninos, vão lá olhar e vejam o que acham.
Entramos na casa, num quarto, o de brinquedos, lá estavam Luiz Fernando Veríssimo seu filho e seu genro um americano, a barulheira era porque disputavam um jogo de pebolim me pareceu.
Retornamos ao jardim e Érico fez ainda um comentário, “sabe o Luiz (Fernando Veríssimo) é a minha criança, tem mais de 30 anos e tenho uma certa preocupação com este menino, não sei o que vai ser dele quando crescer, não se firmou em nada ainda, brincou, até comento isso no livro que estou escrevendo..” (Solo de Clarineta).
Conversamos um pouco mais, agradecemos nos despedimos e fomos embora.
No caminho de volta, no bonde, na travessia do parque da redenção e nas Calçadas da Rua Otávio Rocha, até chegar ao apartamento de meu avô, na esquina da Lima e Silva, não me saia da memória a “mentira”. Como poderia dizer ao Érico que nunca havia lido nada? Que vergonha passaria? Senti-me ainda mais insignificante, como nunca tinha lido um livro antes? Como?
Tomado pelo sentimento do pecado da mentira, resolvi buscar a absolvição, não em uma igreja e sim em uma livraria. Na manhã de segunda feira, bem cedo, depois de pedir um dinheiro emprestado de minha mãe, estava lá na Rua da praia, em frente a livraria. Comprei de uma só vez dois livros, “Olhai os lírios do campo” e “Clarissa”, mais tarde a trilogia “O tempo e o Vento” (O continente- 1949, O Retrato-1951 e o Arquipélago-1962). Essa era a minha penitência... Mal sabia que seria a descoberta do prazer da leitura.
Após ler o primeiro livro, compreendi mais ainda que o abraço e o aperto de mão que se estendera até o coração alguns dias atrás havia se estendido agora até a minha mente. A partir daí, não parei mais de ler, li o segundo, depois a trilogia... e assim foram até hoje muitos outros autores também.
Quando se adquire o hábito da leitura, a vida passa a ter outro sentido e significado e até mesmo outro sabor.
Nunca contei isso ao Érico, ele faleceu em 1975, ma a lembrança daquela tarde, 1966, no bairro Petrópolis de Porto Alegre, sentado em um banco de bonde, ao lado do seu gato preto, lendo jornal bem à vontade, foi fundamental, pois foi o dia em que é Érico Veríssimo me ensinou a ler... a Vida
Ah! Só para lembrar: O romance “Caminhos Cruzados” ainda não li, talvez pelo sentimento de preservar o momento em que de certa forma tivemos nossos caminhos cruzados naquela tarde em 1966, mas o tempo e o vento sei, me farão lê-lo um dia.